Durante os últimos anos, diversas marcas de moda começaram a se aventurar na arquitetura. Algumas construíram museus, fundações e instituições culturais, enquanto outras preferiram arriscar no campo da habitação, edificando luxuosas estruturas residenciais que buscam traduzir para a arquitetura a sua já valiosa identidade de marca. Nesta linha, a KARL LAGERFELD firmou uma importante parceria com a construtora espanhola Sierra Blanca Estates e o escritório de arquitetura, design e branding The One Atelier, lançando a primeira “coleção arquitetônica de luxo” assinada pela Karl Lagerfeld. Desenvolvido pelo The One Atelier, escritório no qual Andrea Boschetti é o arquiteto responsável, o luxuoso projeto das Karl Lagefeld Villas em Marbella, Espanha, foi concebido como uma estrutura sustentável e de baixa pegada de carbono, alinhado ao compromisso da marca com o chamado “Pacto da Moda”—uma iniciativa global que busca transformar a indústria em uma atividade mais sustentável e sintonizada com os desafios climáticos, a promoção da biodiversidade e proteção dos oceanos.
Procurando melhor entender o conceito de “arquitetura de luxo” e questionando-se por que as marcas de moda decidiram se aventurar na indústria da arquitetura e construção, o ArchDaily se reuniu com Andrea Boschetti para saber mais sobre as iniciativas nas quais o arquiteto e planejador urbano tem dedicado a maior parte de seu tempo ao longo dos últimos anos.
A Karl Lagerfeld Villas é um projeto focado principalmente na ideia de combinar luxo e sustentabilidade. Composta por cinco vilas independentes, construídas em estrutura de madeira e revestidas em material cerâmico sintético, o empreendimento residencial de luxo da Karl Lagefeld procura estabelecer uma relação harmônica com a paisagem natural porém, sem afastar-se demasiado do centro urbano e seus benefícios. Localizadas em uma área que já foi considerada apenas um destino turístico e de férias, as Vilas assinadas pela Karl Lagersfeld procuram mostrar que Marbella está se tornando um destino de residências permanentes para quem deseja viver perto da natureza porém sem abrir mão das vantagens da vida na cidade.
A seguir, a entrevista completa do ArchDaily com Andrea Boschetti, o arquiteto responsável pelo projeto das KL Villas.
ArchDaily (Christele Harrouk): De onde surge o conceito inicial utilizado no projeto das Karl Lagerfeld Villas?
Andrea Boschetti: Nossa ideia para o projeto das Villas da Karl Lagerfeld em Marbella era combinar luxo e sustentabilidade em um conjunto residencial único e exclusivo. Para isso, buscamos inspiração na própria identidade da marca, uma empresa comprometida em transformar a industria da moda em uma atividade mais sustentável. Pensando nisso, propusemos a abordar a arquitetura a partir de um outro ponto de vista, incorporando suas ideias para da forma a uma nova arquitetura, conectando finalmente duas disciplinas que normalmente não parecem ter muito em comum. Embora a idéia inicial tenha surgido do desejo de traduzir o espirito da marca para a arquitetura, procuramos não exagerar no que se refere aos artigos de “luxo” incorporados no projeto, priorizando principalmente materiais nobres e naturais porém acessíveis como o terrazzo, o mármore reciclado, a madeira e o revestimento cerâmico das fachadas.
AD: Na sua opinião, o mundo da moda está de fato comprometido com a sustentabilidade, é isso que eles procuram com esta aproximação à arquitetura?
AB: Não podemos generalizar. É preciso entender primeiramente que a industria da moda opera em muitas frentes, e boa parte dela ainda não está pronta para estas mudanças. Por outro lado, é nossa responsabilidade como arquitetos procurar fazer sempre o melhor. Ainda assim, como nos mostra esta inovadora iniciativa da Karl Lagerfeld, parte da industria da moda parece estar muito disposta a se posicionar em relação à sustentabilidade, não apenas no que se refere ao campo da moda e da alta costura, mas também à arquitetura. O plano diretor que concebemos para as Villas Karl Lagerfeld em Marbella não é grande coisa, mas, de certa forma, é uma iniciativa interessante e que pode atrair a atenção de outros empreendedores e empresários do mundo da moda. Talvez este empreendimento possa abrir caminho para outros projetos similares no futuro próximo—é como se tivéssemos tentando mudar a cara do mercado de luxo, uma vez que ninguém mais está interessado em comprar carros esportivos e velozes, mas veículos elétricos e inovadores. Em termos de arquitetura, os clientes acostumados com a industria da alta costura têm uma grande sensibilidade ao design e ao conforto, eles se preocupam mais com a atmosfera do espaço do que com uma fachada monumental.
AD: Nesse sentido, como você definiria a arquitetura de luxo nos dias de hoje?
AB: Como arquiteto, eu costumo trabalhar em projetos urbanos. Quando fomos contratados para desenvolver este empreendimento de luxo em Marbella, estávamos debruçados sobre um mega projeto urbano para a cidade de Milão. Por outro lado eu tive alguma experiência com projetos similares, e talvez por isso o pessoal do The One Atelier me convidou para trabalhar neste projeto—onde era preciso traduzir o DNA de uma marca de moda em um novo gênero de arquitetura de luxo. Ao assumir esta empreitada, era importante para mim manter-me fiel à minha arquitetura, uma arquitetura com raízes profundas no planejamento urbano e regional, e é isso que me faz querer abordar este projeto de um ponto de vista mais amplo e abrangente.
Se você pensar no projeto do museu da Prada em Milão, por exemplo, é evidente que desde a sua inauguração aquela região da cidade mudou para melhor. Nesse sentido, eu acredito que projetos de luxo também podem funcionar como ferramentas de mudança, trazendo benefícios à cidade e às pessoas que vivem nas proximidades. É verdade que não estamos tratando de questões simples e que nem sempre isso é possível. No projeta das Villas Karl Lagerfeld, estamos tratando o terreno como uma espécie de infraestrutura verde acessível, onde pretendemos plantar novas árvores e introduzir uma nova rede de ciclovias e passeios urbanos à beira mar. O conjunto das Vilas também procura complementar a paisagem urbana da cidade costeira junto a qual está inserido. Na verdade, buscamos inspiração na paisagem natural para conceber a geometria formal dos edifícios. Deste modo, não procuramos estabelecer estruturas que se imponham à paisagem, mas edifícios que se conciliam com a natureza.
AD: Você vê alguma semelhança entre o mundo da moda e o mundo da arquitetura? Além da Karl Lagerfeld, muitas outras marcas de luxo estão começando a se aventurar na arquitetura. Na sua opinião, qual é a razão principal por trás deste interesse?
AB: No que se trata a Karl Lagerfeld, embora ele tenha trabalhado para importantes marcas do mundo da moda como a Fendi e a Chanel, ele sempre esteve convencido de que a moda, a beleza e a criatividade devem ser acessíveis a todos. Eu compartilho muito desta sua visão democrática do mundo da moda. Na minha opinião, a arquitetura tem um papel muito similar, aquele de proporcionar qualidade, criatividade e também beleza para o espaço público e para as pessoas. Para mim, este é o principal paralelismo que eu enxergo entre o mundo da moda e o da arquitetura.
E mais do que isso, as marcas de moda estão buscando traduzir seus conceitos para a arquitetura, porque também desejam transcender a sua própria disciplina. Na verdade, muitas marcas de moda têm procurado o The One Atelier com esta mesma demanda: traduzir para o espaço construído o DNA de sua marca. Historicamente as marcas de moda têm trabalhado em outras frentes que não apenas o vestuário, lançando produtos de design e coleções de móveis e objetos de decoração—agora elas parecem mais preocupada em traduzir a sua identidade para o reino da cidade e do domínio público. É como um processo natural de crescimento e expansão, no qual muitas marcas de moda estão investindo muito dinheiro neste momento. Obviamente se trata também de abrir novas frentes de mercado e em ampliar a sua visibilidade na praça. A moda é um dos elementos mais importantes da cultura de consumo, assim como a arquitetura é a referência visual mais importante na escala da cidade.
AD: O que difere a “arquitetura de luxo” da simples arquitetura?
AB: Para mim, não existe grande diferença entre as duas. Com certeza a arquitetura de luxo reivindica espaços maiores, localizações melhores, materiais mais caos e mais investimento em geral. No que se refere à sustentabilidade, não há diferença nenhuma entre uma e a outra. E é nisso que eu procuro focar. Para mim, o luxo se refere apenas à forma como você gasta seu tempo, ou a quantidade de tempo que você tem disponível para gastar consigo mesmo. Em outras palavras, eu pouco me importo com o quanto alguém pretende gastar em um projeto de arquitetura, o que me interessa é criar espaços de qualidade para os meus clientes. A nossa busca reside em traduzir o conceito de luxo, do que é material e tangível, para uma experiência imaterial e sensitiva.
AD: Voltando ao projeto das Villas Karl Lagerfeld em Marbella, você poderia nos contar mais sobre o processo de projeto destas cinco casas?
AB: O projeto conta com cinco unidades unifamiliares que variam entre 660 e 900 metros quadrados. Esse foi o único briefing que recebemos de nosso cliente. Em termos de projeto, procuramos responder a duas questões principais. Primeiro, não queríamos que todas as unidades tivessem a mesma cara porque obviamente nossos clientes estão em busca de uma experiência exclusiva. Em segundo lugar, e que é mais importante, queríamos incorporar a paisagem de forma única em cada projeto, explorando as vistas a partir de cada situação específica. É daí que nasce o projeto das Vilas Karl Lagerfeld, unidades que oferecem diferentes perspectivas para o exterior e diferentes configurações para o interior, com múltiplos ambientes e experiências únicas.
Foi a natureza que moldou a volumetria do conjunto, assim como foram as vistas que definiram o formato das aberturas: às vezes optamos por janelas mais horizontais, as quais enquadram a linha do horizonte e do oceano, em outros casos utilizamos aberturas verticais, recortando o céu, o mar e a vegetação em um único quadro. Isso tudo tem muito a ver com a forma com que a marca encara a moda, recortando e destacando elementos. Além disso, Karl Lagerfeld foi um grande fã de Mies van der Rohe, compartilhando de sua visão de “menos é mais”. Por isso procuramos incorporar essa ideia neste projeto, contrastando os volumes construídos com o espaço vazio. É através da paisagem que conseguimos criar continuidade. As unidades estão conectadas por uma espécie de rio que reinterpreta o contexto natural da cidade de Marbella. Em algumas partes, este curso se transforma em espelhos d'água e, em outras, em piscinas. Além disso, este elemento é parte fundamental do nosso sistema de energias renováveis, além de desempenhar papel fundamental na geometria do conjunto.
AD: Além deste projeto, você está trabalhando em muitas outras coisas, como o plano diretor para a cidade de Loreto e o concurso de Gênova. Você poderia nos contar um pouco mais sobre estes projetos?
AB: Trabalhando em parceira com Stefano Boeri e com a Inside Outside, vencemos o concurso de arquitetura para o Parco del Ponte em Gênova há dois anos, o qual está em processo de construção. Neste caso fomos responsáveis pelo projeto do memorial e de um parque de 60 hectares. Este é um projeto marcado por um intenso diálogo entre o espaço público e privado, uma intervenção como ferramenta de regeneração de toda uma região da cidade de Gênova. Durante o processo de projeto, procuramos ouvir as pessoas para saber o que elas desejavam para este lugar, e foi assim que ele assumiu a forma que tem hoje. O projeto da Piazzale Loreto em Milão, por outro lado, é um projeto em pequena escala porém muito importante para a cidade. Trata-se de transformar uma praça e devolvê-la aos cidadãos. E nisso temos uma enorme responsabilidade porque outras praças poderão seguir o exemplo e transformar a nossa cidade. Para além disso, ela pode se tornar um exemplo de referência para toda a Europa, especialmente no que diz respeito à sua abordagem sustentável nas cidades do futuro.
AD: Por falar em Milão, como você imagina a cidade daqui a 10 anos?
AB: Acredito que a cidade de Milão vai mudar totalmente e para melhor nos próximos dez anos, especialmente no que se refere aos espaços intermediários. Acho que o mais importante neste momento para a cidade de Milão é começar a repensar a habitação, não apenas no centro da cidade, mas também como um modelo de referência para toda a Europa. A habitação é o principal desafio das cidades atualmente. Isso significa que devemos repensar o próprio significado de espaço público e privado, quais são os serviços básicos e elementares de uma cidade, investir em novas abordagens e soluções, e principalmente, questionar os sistemas vigentes de direito de propriedade.